quarta-feira, 4 de junho de 2008

Crónica de uma morte não anunciada

Hoje, morri. Morri de mim. Estou de luto, com um vestido preto de seda comprido que me roça os pés descalços. A minha pele está sem cor, nem sequer está branca porque branco é cor. Tenho o cabelo apanhado em rabo de cavalo. Estou bonita, para quem acabou de morrer.
Vejo choros contidos, semblantes carregados. Estão tristes. As crianças estão quietas, olham para os pais com interrogação.
Eu também quero chorar, mas sequei por dentro. Quero estender a mão mas não consigo chegar a ninguém. Quero dar um passo mas prendem-se-me as pernas. Mordo os lábios com força mas não verte uma gota de sangue. Quero gritar mas a boca não se abre. Não consigo ouvir... Que música estará a ouvir?
Merda, nem um bilhete consegui escrever. Mesmo que o quisesse, agora, não vale a pena. Tão pouco conseguiria papel e caneta para escrever. Tão pouco teria forças.
Lembro-me de tudo, agora que tenho tempo. Vou passar o resto da minha morte atolada de recordações. Mas já não consigo senti-las. Já não te oiço. Movimentas os lábios mas eu não te percebo. Parece que as memórias me morrem.
Oiço o silêncio, porque também este tem o seu som. Está frio. Não os vejo nem sinto, mas devo ter os lábio roxos.
Antes de morrer, de deixar de te ver, ouvir, sentir e cheirar, ouvi esta música. Tão banal, mas era a que estava a passar na rádio. Não fiz de propósito.

Um dia, hei-de voltar. Para mim.


Dry your eyes. I'm only drunk.

1 comentário:

Anónimo disse...

Um texto muito bonito, bem conseguido! Gostei muito!