João das Neves bem tentou manter-se acordado, mas o cansaço da viagem foi mais forte. A mulher, Conceição das Neves, lá estava com a sua fé inabalável, de joelhos no chão, a segurar firmemente a vela nas mãos secas (Conceição esquecera-se de levar o creme Nívea, da lata azul, que há anos, décadas, usa para tudo, até para as assaduras...). Rezava convicta de todas aquelas palavras. As crianças estavam entretidas com a PSP (leia-se Playstation Portable). João das Neves pensou na bênção que era ter aquela família. Uma mulher devota, cumpridora das suas obrigações como esposa e mãe, fiel, trabalhadora e... gorda. Afinal, com tanta dedicação aos outros, pouco tempo sobra para cuidar de si. Ele, João das Neves, era assistente no departamento comercial de uma empresa. Ganhava razoavelmente bem, o suficiente para ter um carro mediano, uma casa mediana e um estilo de vida mediana. Não me posso queixar, podia ser pior, pensava. E pensava na bela da secretária do patrão, que de vez em quando, lhe dava um carinho, quando o patrão não estava.
De volta a casa, de espírito lavado, João e Conceição estavam felizes. Entraram no carro, tudo a postos para o regresso. De repente, o caos. O trânsito parado, filas intermináveis, impaciência, comichões.
- É sempre a mesma coisa, todos os anos é isto, pá. Pra qué que insistes nisto, hã?
- Mas queres ver agora, hã? Fazemos isto todos os anos, não me imagino a não vir a Fátima.
- Então passas a vir tu, pá. Aqui o burro é que tem de vir a conduzir e a gramar com estas merdas.
- Não digas asneiras em terreno sagrado e em frente aos miúdos, hã?
- Ó pá, os miúdos dizem bem pior!
- Ó mãe, o Rúben lá do colégio diz que a professora é uma puta!
- Nossa Senhora, Carminho, limpa a boca.
- Ó mãe, tou aflito pra mijar...
- Luisinho, não é mijar, é fazer chichi, filho.
- É mijar sim senhor. Homem que é homem mija, e é de pé, não faz chichi sentado.
- Mas que coisa, João!
- Olha-me este a querer passar à má fila... O que é que tu queres, ó espertinho? Aqui não passas tu, chico esperto!
- João, calma, não te enerves, não é preciso.
- Ai não? Está aqui um gajo horas a andar meio metro e vem um espertinho e passa-me à frente. Era só o que me faltava.
- Mãe, tou mesmo aflito pra mijar.
- Agora não, Luisinho. Aguenta mais um bocadinho...
- Vou fazer nas calças...
- Tu tás mas é maluco, miúdo, sujas-me os estofos e levas uma galheta que nem sabes de onde vens!!
- João, não fales assim pró miúdo.
- Cala-te mulher! Reza, reza para que isto ande rápido e pra que o puto não me suje os bancos, se não quem paga és tu!
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